Dume: Os dias da semana

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Dume: Os dias da semana

Entre outras singularidades da cultura portuguesa, um dos aspetos que mais chama a atenção de quem nos visita é a curiosa nomenclatura dos nossos dias da semana, sobretudo em comparação com os restantes idiomas românicos. Mas sabe o porquê desse caso particular? Podemos desde já adiantar que a questão é, literalmente, mais velha que a Sé de Braga…

  

A língua portuguesa é um manancial de casos singulares. A sua gramática complexa (por vezes confusa até para os nativos) e o seu vasto vocabulário fazem da mesma uma das mais interessantes e difíceis de estudar, dominar e investigar. Oriunda, tal como as suas congéneres românicas, do latim vernacular, isto é, do latim falado pelas classes mais baixas da sociedade como os soldados ou a plebe, o português – tal como o seu irmão gémeo Galego – sofreu profundas e decisivas influências dos dialetos falados pelos povos castrejos que habitavam o noroeste peninsular antes da romanização da Hispânia.

Mesmo os mais distraídos já se terão, certamente, apercebido de que a língua portuguesa apresenta algumas singularidades entre as línguas latinas. Muitos poderiam ser os exemplos a utilizar, mas o nosso foco hoje vai centrar-se nos dias da semana e no quão peculiar é o caso português. Mas recuemos no tempo…

Caio Júlio Cesar

Figura 1 Caio Júlio César

 

A cultura romana era profundamente politeísta. O dia-a-dia do cidadão romano, fosse ele patricio ou plebeu era marcado pela influência e proteção de centenas e centenas de divindades, quer de origem etrusca, quer de proveniência estrangeira – egípcios, persas e, claro, gregos. Não é por isso de estranhar que um aspeto tão presente no quotidiano como a divisão do tempo estivesse, igualmente, debaixo da alçada divina. Os meses do ano, depois da reforma efetuada por Júlio César, variavam entre nomes de deuses (por exemplo Januarius, do deus Jano, ou Februarius, do deus Fébruo) e os nomes ordinários (September e October, meses sétimo, e oitavo, uma vez que o ano começava em Março). Também os dias da semana eram influenciados pelas divindades, e é aqui que começam as diferenças para o caso português. Em latim, os dias da semana tinham a seguinte nomenclatura: Lunae dies, Martis dies, Mercurii dies, Jovis dies, Veneris dies, Saturni dies e Solis dies. Podemos encontrar similitudes nas restantes línguas latinas. Em espanhol, Lunes, em Francês Mardi, em italiano Mercoledì, ou em Romeno Joi, podemos verificar o quão presente continua a herança pagã no seu quotidiano.

 

São Martinho de Dume

Figura 2 São Martinho de Dume na galeria dos prelados de Braga

 

Pese não haver nenhum documento em Portugal que ateste a utilização da versão “pagã”, é consensual que o mesmo se tenha verificado (o Galego, sempre útil para o estudo da evolução da língua portuguesa, continua a utilizar mais frequentemente a versão pagã). No entanto isso iria mudar no séc. VI, num dos grandes polos culturais da Península ibérica da alta Idade Média, Bracara, através de um dos seus mais notáveis bispos: Martinho.

São Martinho de Dume nasceu na Panónia (atual Hungria) nos inícios do século VI. A proximidade com Império Romano do Oriente levou-o a Constantinopla e a Alexandria onde estou com os grandes mestres e filósofos da altura. Mais tarde vem até à Ibéria, para os arredores de Bracara Augusta, onde funda uma célula monástica em Dume. A sua brilhante gestão e orientação para o conhecimento fizeram florescer o mosteiro de tal maneira que o Papa o elevou à condição de Diocese, fazendo de Martinho o seu primeiro Bispo. Mais tarde, dada a vacância da diocese vizinha, Martinho é ordenado Bispo Metropolitano de Braga, cargo que ocuparia até á sua morte, por volta de 580.

Arca Tumular de São Martinho

Figura 3 arca tumular de São Martinho - Museu D. Diogo de Sousa

É na capital do reino Suevo que Martinho atingirá algumas das suas ações de maior notoriedade. Entre as suas realizações maiores, há que destacar a conversão dos Suevos do Arianismo ao Catolicismo, ou a adoção de uma nova nomenclatura para os dias da semana, rompendo definitivamente com a tradição pagã. O contexto, ou melhor, o pretexto, foi a semana santa e as suas orações. Segundo Martinho, para além de não fazer sentido, era indecoroso usar terminologia pagã durante a Semana em que se recorda a Paixão de Cristo. Então utilizando terminologia mais liturgica, e pegando na ideia de que Domingo, ou Dominica, era o primeiro dia da semana, o seguinte seria a Feria Secunda, seguido pela Feria Tertia, e assim sucessivamente até ao Sabbatum. sendo que o termo feria significa dia santo. Este sistema, como vimos, foi pensado e, primeiramente, aplicado apenas durante as celebrações da Semana Santa, mas o seu sucesso foi tal que não tardou sem generalizar-se, mais tarde, durante todo o ano como forma de rompimento e afirmação cultural entre do novel reino de Portugal.

Martinho, ou melhor, São Martinho de Dume, esse, ficaria para eternidade conhecido como um dos mais brilhantes prelados e pensadores da cristandade e uma figura fulcral daquilo que hoje consideramos cultura portuguesa.

 

 

Artigo escrito por Tiago Lopes Botelho